No cenário jurídico ambiental brasileiro, a aquisição de um imóvel rural ou urbano que já apresenta algum tipo de degradação ambiental é um tema que gera muitas dúvidas e, por vezes, sérias implicações legais. A questão central reside em determinar se o novo proprietário, que não causou o dano original, pode ser responsabilizado pela sua reparação. A resposta, conforme consolidado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), é afirmativa, e se baseia em um princípio fundamental do Direito Ambiental: a natureza propter rem da obrigação de reparar o dano ambiental. Este artigo aprofundará essa temática, explorando os fundamentos legais, as decisões do STJ, e as implicações práticas para proprietários e investidores no Brasil.
A Natureza Propter Rem da Obrigação Ambiental
O conceito de obrigação propter rem (ou obrigação ‘em razão da coisa’) é crucial para entender a responsabilidade ambiental no Brasil. Diferentemente das obrigações pessoais, que vinculam uma pessoa a outra, as obrigações propter rem estão ligadas a um bem, ou seja, à propriedade ou posse de um imóvel. Isso significa que a obrigação de reparar um dano ambiental adere à coisa e é transmitida a quem quer que se torne seu proprietário ou possuidor, independentemente de ter sido o causador direto do dano.
Este princípio é amplamente aceito na jurisprudência brasileira e encontra respaldo em diversas leis, como a Lei nº 8.171/91 (Lei Agrícola) e a Lei nº 12.651/12 (Novo Código Florestal). O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem reiteradamente afirmado que a obrigação de recompor o meio ambiente degradado é de natureza propter rem, o que permite que a ação de reparação seja direcionada tanto ao proprietário ou possuidor atual do imóvel quanto aos anteriores, ou a ambos, à escolha do credor (geralmente o Ministério Público ou órgãos ambientais).
A fundamentação para essa abordagem reside na ideia de que o meio ambiente é um bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, e sua proteção é um dever do Poder Público e da coletividade, conforme o artigo 225 da Constituição Federal. Assim, a degradação ambiental não afeta apenas o proprietário do imóvel, mas toda a sociedade. A responsabilidade propter rem garante que a reparação do dano seja efetivada, mesmo que o causador original não possa ser identificado ou não tenha mais vínculo com a área.
A Responsabilidade do Comprador: O Entendimento do STJ
O Superior Tribunal de Justiça, por meio de diversos julgados e, mais recentemente, com a fixação do Tema 1.204 em sede de recurso repetitivo, consolidou o entendimento de que o comprador de uma área degradada também responde pelo dano ambiental preexistente. Essa decisão é de suma importância, pois estabelece um marco na interpretação da responsabilidade ambiental no país.
O Tema 1.204 do STJ define que as obrigações ambientais possuem natureza propter rem, o que significa que o credor (o ente público ou a coletividade lesada) pode escolher a quem cobrar a reparação: ao proprietário ou possuidor atual, a qualquer dos anteriores, ou a ambos. A única exceção a essa regra é para o alienante (o vendedor) cujo direito real sobre o imóvel tenha cessado antes da causação do dano, desde que ele não tenha concorrido, direta ou indiretamente, para a degradação.
Essa interpretação é reforçada pela Súmula 623 do STJ, que já previa que
as obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor. A lógica por trás dessa súmula e do Tema 1.204 é que o atual proprietário, ao adquirir o imóvel, assume também os ônus e as responsabilidades a ele inerentes, incluindo a recuperação de passivos ambientais.
É importante ressaltar que a responsabilidade do comprador não se limita apenas aos danos causados por terceiros antes da aquisição. A jurisprudência do STJ entende que o atual titular que se mantém inerte em relação à degradação ambiental, ainda que preexistente, também comete ato ilícito. Isso ocorre porque a preservação de áreas de preservação permanente (APPs) e de reserva legal (RL) são imposições genéricas que decorrem diretamente da lei, sendo consideradas pressupostos intrínsecos do direito de propriedade e posse. Em outras palavras, quem se beneficia da degradação ambiental alheia, a agrava ou lhe dá continuidade, é considerado igualmente degradador.
A Importância do Nexo Causal e da Omissão Ilícita
Embora a responsabilidade civil ambiental no Brasil seja objetiva, ou seja, independa da comprovação de culpa ou dolo, a jurisprudência do STJ tem enfatizado a necessidade de se constatar o nexo causal entre a ação ou a omissão e o dano causado para configurar a responsabilidade. Isso significa que, mesmo que o comprador não tenha sido o causador direto do dano, sua responsabilidade pode surgir da sua omissão em não reparar o dano preexistente ou em não impedir o seu agravamento.
Um ponto crucial abordado pelo STJ é a situação do titular anterior que não deu causa ao dano ambiental, mas conviveu com ele e, posteriormente, alienou a área no estado em que a recebeu. Nesses casos, o STJ entende que há uma omissão ilícita, e o alienante também pode ser responsabilizado. A lógica é que não se pode admitir que alguém que deixou de reparar um ilícito ambiental, e possivelmente se beneficiou dele, fique isento de responsabilidade.
Essa nuance do nexo causal e da omissão ilícita é fundamental para compreender a extensão da responsabilidade ambiental. Não se trata apenas de quem causou o dano inicialmente, mas também de quem tinha o dever legal de agir para mitigar ou reparar a degradação e não o fez. A responsabilidade, portanto, abrange tanto a ação direta de poluir quanto a inação diante de uma situação de degradação ambiental.
Leis e Súmulas Relevantes
A responsabilidade ambiental no Brasil é regida por um conjunto robusto de leis e entendimentos jurisprudenciais. Além da Constituição Federal (art. 225), que estabelece o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, destacam-se as seguintes normas:
- Lei nº 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente): Esta lei é um pilar do direito ambiental brasileiro. Seu artigo 14, § 1º, estabelece a responsabilidade civil objetiva por dano ambiental, o que significa que, para que haja a obrigação de reparar, basta a existência do dano e do nexo causal com a atividade do poluidor, independentemente de culpa. O artigo 3º, IV, define poluidor como a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental. A responsabilidade é solidária, permitindo que a vítima ou o Ministério Público acione qualquer um dos poluidores.
- Lei nº 8.171/91 (Lei Agrícola): Esta lei, embora mais antiga, é citada na jurisprudência do STJ para reforçar o caráter propter rem da obrigação ambiental, especialmente no contexto rural. Ela vigora para todos os proprietários rurais, ainda que não sejam eles os responsáveis por desmatamentos anteriores.
- Lei nº 12.651/12 (Novo Código Florestal): O artigo 2º, § 2º, desta lei atribui expressamente caráter ambulatorial à obrigação ambiental, dispondo que elas têm “natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural”. Isso corrobora a tese da responsabilidade do adquirente.
- Súmula 623 do STJ: “As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor”. Esta súmula é um resumo claro do entendimento consolidado do STJ sobre o tema.
- Tema 1.204 do STJ (Recurso Repetitivo REsp 1.962.089): Este tema consolidou o entendimento de que o comprador de área degradada também responde pelo dano ambiental, reforçando a natureza propter rem da obrigação e a possibilidade de o credor escolher a quem cobrar a reparação, com a ressalva para o alienante que não concorreu para o dano e cujo direito real cessou antes da causação.
Essas leis e súmulas formam a base legal que sustenta a responsabilização do comprador de áreas degradadas, demonstrando a preocupação do legislador e do judiciário em garantir a efetiva recuperação do meio ambiente.
Exemplos e Casos Práticos no Brasil
Embora a jurisprudência do STJ seja clara, é nos casos práticos que a aplicação desses princípios se torna mais tangível. Um exemplo ilustrativo, embora não diretamente de compra e venda de área degradada, mas que demonstra a amplitude da responsabilidade ambiental por omissão e nexo causal, é o caso de uma siderúrgica que utiliza carvão de origem ilegal.
Em um processo de Ação Civil Pública movida pelo IBAMA contra uma siderúrgica (REsp 1010603-35.2019.4.01.3800), a discussão central girava em torno da responsabilidade da empresa pela utilização de carvão sem origem regular, o que teria resultado em desmatamento ilícito. Mesmo que a siderúrgica alegasse desconhecer a origem irregular do carvão, o IBAMA argumentava que a empresa se beneficiou economicamente do esquema, sendo, portanto, responsável indiretamente pela degradação ambiental. Foram lavrados autos de infração com valores milionários.
Este caso, embora não envolva a aquisição de um imóvel já degradado, ressalta a importância do nexo causal e da omissão. A siderúrgica, ao se beneficiar de uma cadeia produtiva que envolvia desmatamento ilegal, mesmo que não tenha sido a causadora direta do corte das árvores, foi responsabilizada por sua participação indireta e por sua omissão em não verificar a regularidade da origem da matéria-prima. A responsabilidade ambiental, portanto, transcende a mera causação direta do dano, alcançando aqueles que se beneficiam ou se omitem diante da degradação.
Outros exemplos práticos, embora não detalhados em acórdãos específicos disponíveis publicamente de forma simplificada, podem ser inferidos da aplicação do Tema 1.204 do STJ. Imagine um proprietário rural que adquire uma fazenda com áreas de preservação permanente (APPs) desmatadas ilegalmente por um proprietário anterior. Mesmo que o novo proprietário não tenha realizado o desmatamento, a partir do momento da aquisição, ele se torna responsável pela recuperação dessas APPs. Sua inércia em não promover a recuperação configura uma omissão ilícita, sujeitando-o às sanções e obrigações de reparação.
Da mesma forma, em áreas urbanas, a compra de um terreno onde houve contaminação do solo por atividades anteriores pode gerar responsabilidade para o novo adquirente. A obrigação de remediar a contaminação, por ter natureza propter rem, recai sobre o atual proprietário, que deverá arcar com os custos da descontaminação, mesmo que não tenha sido o responsável pela poluição inicial.
Esses exemplos demonstram a amplitude da responsabilidade ambiental e a necessidade de uma diligência prévia rigorosa antes da aquisição de qualquer imóvel, especialmente aqueles com histórico de uso que possa ter gerado passivos ambientais.
Perguntas Frequentes (FAQ)
O que significa a natureza propter rem da obrigação ambiental?
Significa que a obrigação de reparar um dano ambiental está vinculada ao imóvel e é transmitida a quem quer que se torne seu proprietário ou possuidor, independentemente de ter sido o causador direto do dano.
O comprador de uma área degradada é sempre responsável pelo dano ambiental preexistente?
Sim, de acordo com o entendimento do STJ (Tema 1.204 e Súmula 623), o comprador é responsável, pois a obrigação tem natureza propter rem. A exceção é para o alienante que não concorreu para o dano e cujo direito real cessou antes da causação.
A responsabilidade ambiental exige a comprovação de culpa?
Não. A responsabilidade civil ambiental no Brasil é objetiva, ou seja, independe da comprovação de culpa ou dolo. Basta a existência do dano e do nexo causal (ação ou omissão) para que a responsabilidade seja configurada.
O que é omissão ilícita no contexto da responsabilidade ambiental?
É a inação do proprietário ou possuidor em não reparar um dano ambiental preexistente ou em não impedir o seu agravamento. Quem se beneficia da degradação alheia ou lhe dá continuidade também comete ato ilícito.
Como um comprador pode se proteger ao adquirir um imóvel?
É fundamental realizar uma auditoria ambiental prévia (due diligence ambiental) para identificar possíveis passivos. Além disso, é recomendável incluir cláusulas contratuais que prevejam a responsabilidade do vendedor por danos preexistentes e garantias para a recuperação ambiental.
Conclusão
A responsabilidade ambiental do comprador de áreas degradadas no Brasil é um tema de extrema relevância e complexidade, consolidado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. A natureza propter rem da obrigação ambiental garante que a recuperação do meio ambiente seja efetivada, independentemente de quem tenha causado o dano inicialmente. O entendimento do STJ, especialmente o Tema 1.204, reforça que o adquirente de um imóvel com passivo ambiental assume a responsabilidade pela sua recuperação, mesmo que não tenha sido o poluidor original. A inércia diante de uma degradação preexistente também configura ato ilícito, sujeitando o novo proprietário às sanções e obrigações de reparação.
Diante desse cenário, a diligência prévia se torna uma ferramenta indispensável para qualquer pessoa ou empresa que pretenda adquirir um imóvel no Brasil. A realização de uma auditoria ambiental completa, a análise de históricos de uso da área e a inclusão de cláusulas contratuais específicas são medidas essenciais para mitigar riscos e evitar surpresas desagradáveis. A proteção do meio ambiente é um dever de todos, e a legislação brasileira, com o apoio da jurisprudência, busca garantir que essa responsabilidade seja efetivamente cumprida, visando a um futuro mais sustentável para as próximas gerações.
Proteja seu investimento e o meio ambiente!
Se você está pensando em adquirir um imóvel ou já possui uma propriedade e tem dúvidas sobre a responsabilidade ambiental, consulte um especialista em Direito Ambiental. Um advogado especializado poderá realizar uma análise de risco, orientá-lo sobre a legislação aplicável e auxiliar na elaboração de contratos seguros, garantindo que você esteja em conformidade com a lei e contribua para a preservação do nosso patrimônio natural.